“O desaparecimento é uma morte que não conclui. É uma morte continuada.”

Crescimento de notificações sobre pessoas desaparecidas no Brasil joga luz a um problema humanitário invisibilizado e subnotificado.

Laura Molinari
4 min readNov 28, 2020

Em 2019, desapareceram 217 pessoas por dia no Brasil. É um número que preocupa o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que faz esforços no país desde 2014 para amenizar os problemas do desaparecimento junto de familiares das vítimas e de autoridades federais e estaduais.

O desaparecimento de pessoas é uma violência dolorosa, que afeta dezenas de milhares de brasileiros por ano e deixa um extenso rastro de impactados pelo caminho. São familiares e amigos que ficam anos, às vezes toda a vida, alimentando esperanças e procurando respostas sobre o paradeiro de um ente querido sem saber se ele está vivo ou morto.

Fora o sofrimento emocional, parentes também atravessam dificuldades financeiras seja pela ausência da pessoa provedora, seja pelo investimento em suas próprias ações de busca e processos administrativos. Por faltar um mecanismo estatal eficaz de busca, localização, gestão de informação e de relacionamento com os familiares, muitos deles não sabem como agir em uma situação de desaparecimento.

“A minha família precisou vender uma casa para arcar com os custos das buscas em outro estado. Todo o dinheiro da venda da casa foi gasto para manter minha avó enquanto buscava ativamente”, relatou a neta de uma pessoa desaparecida durante o regime militar no Brasil para o CICV, na Avaliação das Necessidades dos Familiares de Pessoas Desaparecidas: “Caso Vala de Perus”.

Ivanise Esperidião busca por sua filha desaparecida Fabiana Esperidião da Silva desde 1995. Foto: Marizilda Cruppe/CICV

Mesmo subnotificados, registros são alarmantes

O novo Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou 79.275 desaparecimentos só no ano passado. Este é o quarto relatório consecutivo a apresentar dados sobre desaparecimentos no Brasil — em 2017, o anuário mostrou uma média de 69 mil casos por ano, de 2007 a 2016. A edição atual mostra um crescimento de registros, com 77.907 desaparecimentos contabilizados em 2018 e 79.275 em 2019.

“Sabemos que há milhares de familiares de desaparecidos e muitos grupos organizados. Mas percebemos que não estão muito conectados, são como peças soltas de um quebra-cabeça”, comunicou Larissa Leite, responsável do programa de pessoas desaparecidas da Delegação Regional do CICV. A organização alerta para a necessidade de coordenação entre instituições, em especial do Estado brasileiro.

Traçar o perfil e as causas de desaparecimento é um desafio, pois as bases de dados nacionais costumam ser escassas e desarticuladas. O Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), estado com maior registro de desaparecidos do Brasil, realizou uma pesquisa baseada em 24.261 queixas registradas entre 2013 e 2014, revelando que a população jovem foi a mais afetada.

A pesquisa do MPSP alerta para uma diferença na idade de desaparecidos homens e mulheres: enquanto eles se distribuem em uma faixa etária mais abrangente, as desaparecidas são majoritariamente adolescentes. O resultado é um alerta para crimes de sequestro e tráfico de pessoas que afetam especialmente as mulheres jovens.

Distribuição das idades dos indivíduos envolvidos nas queixas, em anos, desagregado por sexo (MPSP)

Caso “Vala de Perus” e os invisíveis desaparecidos da Ditadura Militar

O país herdou do período ditatorial uma lista desconhecida de desaparecimentos sem registro. Apesar da Comissão Nacional da Verdade de 2014 relatar 434 pessoas mortas ou desaparecidas por razões políticas durante o regime, ela não contabiliza indígenas, parte da população rural nem pessoas que não foram consideradas desaparecidas devido a atividades políticas.

Dessa lista, hoje, restam 114 vidas não encontradas. Foi nesse contexto que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) fez uma pesquisa com 58 familiares de 32 dessas pessoas desaparecidas a fim de ampliar as suas vozes e chamar a atenção de autoridades estatais para a problemática.

Apesar das particularidades existirem, a pesquisa de 2016 notou certos consensos entre a maior parte dos entrevistados: a prioridade é saber o que aconteceu com as vítimas e localizar os seus restos mortais. Como diz um dos participantes, “o desaparecimento é uma morte que não conclui. É uma morte continuada”, difícil de ser aceita quando não é materializada em evidências.

O relatório do CICV reitera a importância de se estabelecer um mecanismo de eficiência nacional, que coordene a busca e identificação de pessoas, facilite o acesso a direitos e benefícios sociais, forneça suporte psicológico e psicossocial e promova iniciativas de preservação da memória dos desaparecidos.

A nova Lei 13.812, instituída em março do ano passado, estabelece a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas e reconhece a urgência e a responsabilidade do Estado em sua implementação. Resta às autoridades efetivar mecanismos para que essa grave questão humanitária seja mais bem gerida e esclarecida às vítimas e à sociedade.

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