Casos de violência relacionados à Covid-19 são uma preocupação global

Estigmatização, desinformação e abuso de poder estão entre as diversas motivações para os ataques contra profissionais da saúde e a população civil

Laura Molinari
4 min readDec 17, 2020

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) registrou 611 casos de violência relacionados à Covid-19, afetando pacientes, profissionais e estabelecimentos de saúde em mais de 40 países. Os dados representam apenas casos registrados entre 1 de fevereiro e 31 de julho, e há possibilidade do número real ser muito mais elevado.

Usar violência contra serviços de assistência à saúde é um fenômeno global e que se aplica historicamente como uma tática de guerra, apesar de condenado por leis internacionais. Mas nos últimos meses, a crise da pandemia levou os ataques à saúde a um novo patamar de registros, seja em regiões de conflitos armados ou não.

As razões que levam aos ataques variam muito e dependem de contextos locais. “Não tem um perpetrador [de violência] típico”, explica Ana Elisa Barbar, assessora da iniciativa Assistência à Saúde em Perigo do CICV, em Genebra. “Você pode encontrar perpetradores que são portadores de armas e que fazem parte do conflito, mas você pode ter também a violência sendo perpetrada por civis.”

Para populações que vivem em zonas de conflito, a disseminação do vírus representa apenas uma entre tantas ameaças: muitas dessas regiões carecem de serviços básicos como água e alimentação. Sistemas de saúde não raro são devastados pela guerra, pessoas são obrigadas a deixar seus lares e medidas de isolamento social são quase impraticáveis.

Em outras palavras, as guerras não acabaram por causa do coronavírus. “Não houve uma redução das hostilidades, nem dos acidentes ou dos ataques direcionados aos agentes de saúde”, ressalta Barbar sobre as regiões submetidas a conflitos armados.

Estigma, desinformação e medo

O medo da propagação do vírus é um gerador potencial de violência. Profissionais da saúde e pacientes do mundo inteiro vivenciam a estigmatização na forma de insultos, assédios ou violência física: dos registros feitos pelo CICV, 15% representam discriminação baseada em medo e outros 15% foram agressões verbais ou ameaças.

O temor de ser taxado como “disseminador da praga” na comunidade pode contribuir para que pessoas não busquem ajuda médica. Além disso, pode comprometer a qualidade dos serviços prestados à população e deixar pacientes com sintomas graves sem assistência. A estigmatização também resulta em violências graves contra equipes de saúde.

Outro fenômeno que pode incitar respostas violentas é a chamada “infodemia”, uma grande onda de desinformação, informações conflituosas, dados não confiáveis, boatos e opiniões destoantes sobre o novo coronavírus. “A confusão gera angústia e se reverte em tensão e expectativas não atendidas pelos serviços de saúde”, explica Ana Elisa Barbar, referindo-se ao fato de que os profissionais da área não conseguem responder a demanda instalada.

“Forçados a matar para preservar a vida”

Essa e outras sentenças estamparam panfletos distribuídos por grupos armados à população colombiana. De acordo com um documento publicado pela Human Rights Watch, diversos grupos dissidentes usaram a violência como forma de contenção do vírus em ao menos 5 estados na Colômbia.

Grupos armados teriam cometido assassinatos e outros abusos contra civis que não respeitassem as medidas impostas de contenção do vírus. A organização documentou ao menos 8 mortes de civis que descumpriram medidas como toque de recolher, lockdown e fechamento de estabelecimentos, e de um civil por se opor às agressões.

As medidas impostas são independentes das decisões do governo, que permitem à população sair de suas casas, e revelam abuso de controle social das forças do conflito armado colombiano, sobretudo em regiões remotas.

“Eles dizem que fazem isso para prevenir que o vírus chegue a nós, mas eles sempre impuseram medidas de controle social e territorial… Ninguém vai nos proteger aqui”, relatou ao Human Rights Watch um líder comunitário da estado de Guaviare, na Colômbia.

A Colômbia vive um dos conflitos armados mais antigos da América Latina, que se complexificou após o Acordo de Paz entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — Exército do Povo (Farc-EP) e o governo do país, em 2016. Outros grupos organizados passaram a ganhar força e disputar entre si, havendo hoje pelo menos cinco conflitos armados no país.

“No caso de conflito armado, há pessoas que podem retirar a vida um de outro. A vida não é protegida de maneira ilimitada”, explica Tarciso dal Maso, jurista e consultor legislativo do Senado Federal na área de relações exteriores e defesa nacional. “O que o Direito Internacional Humanitário protege são os civis. Esses civis devem ser protegidos, e não podem sofrer consequências do conflito. Não podem ter sua vida violada e não pode ser alvo de ataques.”

O Direito Internacional Humanitário salvaguarda a vida de civis e exige respeito aos seus direitos. Isso envolve as obrigações do governo colombiano na proteção da população, assim como a condenação dos ataques a civis feitos pelos grupos armados.

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